Mentiras, negação da realidade, falácias, teorias da conspiração, fake news, falsas polêmicas. As diferentes estratégias da desinformação são utilizadas por líderes políticos para enganar de forma consciente e não tratar de questões imediatas como um plano de combate a pandemia do coronavírus. De forma inédita, essas afirmações e alertas estão partindo das empresas de tecnologia e redes sociais.
Se você visitar a timeline de Donald Trump no Twitter neste instante vai se deparar com alertas da rede social em suas postagens, indicando que tratam-se de alegações contestáveis ou mesmo que contêm informações incorretas:
I WON THIS ELECTION, BY A LOT!
— Donald J. Trump (@realDonaldTrump) November 7, 2020
O Twitter, assim como o Facebook, mobilizou uma força tarefa no pleito americano deste ano para que conteúdos falsos e que podem desestabilizar as eleições sejam desmentidos. Ou para que ao menos recebam o alerta de “duvidoso”, antes que se espalhem muito e influenciem os rumos da disputa.
Em 2016, o fenômeno de disseminação massiva de fake news, o escândalo da Cambridge Analytics e a nova “estratégia” política por trás desses acontecimentos já indicavam os rumos da política americana e mundial nos próximos anos. Quem alertou indiretamente para o problema foi justamente um grupo de pesquisadores norte-americanos, mas que não tinham como objeto de estudo o caso americano.
No artigo “The Russian ‘Firehose of Falsehood’ Propaganda Model” (2016), em tradução literal “O Modelo de Propaganda Russo “Mangueira de Incêndio da Falsidade””, o grupo de pesquisas americano Rand Corporation analisa a estratégia política de disseminação de mentiras utilizada por Vladimir Putin em diversos momentos ao longo do seu primeiro mandato como presidente na Rússia. A analogia com a mangueira de incêndio, que depois ficou conhecida simplesmente como firehosing, faz alusão ao volume e força da disseminação de notícias mentirosas.
Mas qualquer mentira espalhada massivamente enquadra-se como firehosing? De acordo com o estudo, não. Analisando-as como uma estratégia de propaganda política, o Rand Corporation conseguiu traçar algumas características em comum dessas fake news, contadas em geral por líderes políticos a fim de confundir a população e, por fim, direcionar a opinião pública a seu favor. São elas:
1 – Alto volume de conteúdo e em canais diversificados
A lorota pode ser contada em diversas redes sociais ou até proferida em discursos oficiais e entrevistas transmitidas na televisão, por exemplo. Ao receberem aquela informação de diversas fontes, as pessoas intuitivamente começam a dar mais credibilidade a ela.
Quer um exemplo “da casa”? Em 2018, durante sua campanha, o atual presidente Jair Bolsonaro espalhou uma das fake news mais longevas daquele pleito: o kit gay. O então candidato postou a história nas suas redes sociais, que depois foi disseminada por milhares de seguidores. Bolsonaro chegou até mesmo a contá-la em rede nacional, quando deu uma entrevista ao Jornal Nacional e levou um dos livros que supostamente faria parte desse kit.
Em outubro daquele ano, uma checagem do Aos Fatos indicava que, em poucos dias, as fake news envolvendo o Kit Gay já haviam sido compartilhadas mais de 65 mil vezes no Facebook.
2 – Processo rápido, contínuo e repetitivo
Tal qual uma mangueira de incêndio, as mentiras seguem a ideia de agilidade contínua. Sabe aquela história de a primeira impressão é a que fica? Pois é, essas mentiras online geralmente apresentam uma novidade em primeira mão para as pessoas, e mesmo que depois a história seja desmentida, a primeira impressão já está consolidada. As reiteradas tentativas do presidente Donald Trump de interferir nos resultados das eleições americanas de 2020 é um exemplo claro.
Antes do termino da apuração dos votos, Trump foi às redes sociais declarar-se vitorioso, em uma tentativa de ter esse “monopólio” da primeira impressão. Ele tentou a mesma estratégia quando apontou fraude eleitoral durante um pronunciamento na televisão aberta. As principais emissoras do país cortaram a transmissão. Embora esteja tentando disseminar mentiras de maneira rápida, contínua e repetitiva, a estratégia de Trump vem sendo minada por não conseguir atingir um grande volume ou espalhar-se por diferentes canais – o primeiro requisito do firehosing.
3 – Sem compromisso com a realidade
É claro que todas essas informações são, em menor ou maior grau, inventadas. O caso do kit gay, por exemplo, tem como pano de fundo um material didático que de fato foi distribuído em escolas durante o governo Dilma, mas que não tinha como intenção promover doutrinação sobre “ideologia de gênero”. Tratava-se um trabalho de conscientização sobre diversidade.
Já no caso de Trump, a alegação de fraude não partiu de nenhum acontecimento prévio ou suspeita real: especialistas de todo o país alegam que é impossível que o pleito tenha sido fraudado. Parcial ou integralmente inventadas, essas mentiras têm, segundo os autores do estudo, algo em comum: são “informações que se conectam com a identidade dos grupos, com narrativas familiares ou aquelas que geram emoções podem ser particularmente convincentes”.
4 – Sem consistência entre os discursos
Para as figuras políticas que valem-se do firehosing, pouco importa se suas mentiras terão de ser desmentidas mais tarde, ou se não há uma coerência entre o que é dito em um discurso e outro. O importante é gerar a confusão e desinformação inicial.
Um dos casos estudados pela Rand Corporation foi o envio das tropas russas à Crimeia durante a anexação do território, disputado por Rússia e Ucrânia. À época, embora a imprensa apontasse que Putin havia enviado soldados para a região, o presidente insistia por meio de postagens, discursos e entrevistas que não o tinha feito. Anos depois, com a Crimeia já anexada, Putin admitiu ter enviado as tropas. Ou seja, pouco importou a ele se contradizer ou admitir que havia mentido antes.
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E a famosa “cortina de fumaça”, também tem a ver com o firehosing?
Se o termo firehosing não pegou tanto por aqui quanto nos Estados Unidos, Rússia ou mesmo Reino Unido, uma outra estratégia de desinformação tornou-se frequente o noticiário brasileiro: a cortina de fumaça.
No mês passado, o colunista da Veja Thomas Traumann falou da cortina de fumaça criada por Bolsonaro ao atacar a vacina chinesa. Segundo o jornalista, essa foi uma forma de desviar a atenção da nomeação de Kassio Nunes Marques para o Supremo Tribunal Federal. Nesse caso, diz Trumann, a intenção era distrair justamente os bolsonaristas, que não aprovam nem um pouco a indicação de alguém articulado com o centrão para o cargo.
Em texto ao UOL ainda em março, o jornalista Leonardo Sakamoto apontou outras vezes em que cortinas de fumaça foram levantadas nos últimos anos para desviar o foco de pautas importantes. Uma dessas ocasiões foi quando o presidente levou um humorista para distribuir bananas aos jornalistas e, assim, evitou falar do crescimento irrisório do PIB divulgado mais cedo no mesmo dia.
Como os exemplos indicam, a cortina de fumaça nada mais é do que a estratégia de atrair atenção para assuntos irrelevantes ou falsos de forma a tirar a atenção de pautas centrais e de maior impacto. Essas cortinas são criadas tanto a partir de fake news – e, nesses casos, podem aliar-se à estratégia de firehosing – quanto de “piadas” como a do humorista das bananas ou mesmo o famoso tuíte sobre golden shower.
Caminhos para combater
O firehosing, a cortina de fumaça e outras estratégias de desinformação usadas na política são ainda muito recentes e, por isso, não existe um caminho milagroso para combatê-las. As checagens feitas por agências de jornalismo e mesmo os alertas das empresas como Facebook e Twitter nas publicações ajudam, mas o mais efetivo e indicado por especialistas é a educação midiática.
Os próprios autores do estudo sobre firehosing, a psicóloga social Miriam Matthews e o cientista social Christopher Paul, afirmam que não basta desmentir fake news. É preciso mostrar como opera a produção de desinformação.
Em artigo ao Le Monde Diplomatique, o jornalista Renan Borges Simão cita o linguista norte-americano George Lakoff, que trabalha, segundo ele, com o conceito de verdade-sanduíche: “primeiro exponha o que é verdade; depois aponte qual é a mentira e diga como ela é diferente do fato verdadeiro; depois repita a verdade e conte quais são as consequências dessa contradição”. Assim, é possível desmentir discursos falsos sem simplesmente repeti-los.
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Desinformação: como é feita a ‘cortina de fumaça’ e o firehosing publicado primeiro em https://guiadoestudante.abril.com.br
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