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sexta-feira, 13 de novembro de 2020

Kamala Harris e a importância da representatividade

Em 2020, as eleições nos EUA foram cercadas de polarização, fake news e desconfianças quanto à legitimidade da contagem de votos. A vitória de Joe Biden – reconhecida tanto internamente como pela maioria dos líderes globais – é histórica não apenas pela derrota da extrema-direita, representada pelo atual presidente Donald Trump, mas também pela presença da vice eleita, Kamala Harris. Ela é a primeira mulher e a primeira pessoa negra a ocupar o cargo. 

A ascensão da hoje senadora vem num ano marcado pelos protestos em prol do combate antirracista, o Black Lives Matter.  Mas o que a vitória da chapa Biden-Harris significa para a representatividade de negros em cargos de liderança? Além disso, em países com histórico escravagista, como Estados Unidos e Brasil, as oportunidades nas universidades e no mercado de trabalho melhoraram realmente ou ainda há uma dívida histórica para ser paga?

Para começar a entender essa questão, vamos conhecer um pouco mais dessa vice-presidente histórica.

Afinal, quem é Kamala Harris?

Filha de mãe indiana e pai jamaicano, a primeira vice-presidente negra tem uma história de pioneirismo na política. Ela foi a primeira negra procuradora na história do estado da Califórnia e a segunda mulher a ocupar uma cadeira no Senado nos Estados Unidos. Pré-candidata pelo partido Democrata para as eleições de 2020, Kamala suspendeu sua campanha e foi escolhida para integrar a chapa presidencial de Joe Biden, em agosto. A escolha de Harris deu força para a candidatura democrata, uma vez que, em meio aos protestos do Black Lives Matter, ela se tornou uma figura representativa.

Kamala é pop. Mais acessível e carismática do que os candidatos à presidência, ela recebeu apoio da camada mais jovem da população americana. A história de seus pais imigrantes e até de seu relacionamento com o atual marido, Douglas Emhoff, aproximou a senadora dos eleitores.

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Kamala tem um currículo invejável e, segundo muitos analistas, está sendo preparada para assumir a cabeça da chapa em 2024, uma vez que Biden estará perto dos 82 anos na próxima campanha. Não seria a primeira vez que os Estados Unidos teriam um presidente negro – Barack Obama governou de 2009 a 2017. Mas seria a primeira mulher no comando do país. Mas, para muitos brasileiros, ela não é percebida como uma mulher negra por causa do seu tom de pele mais claro.

O GUIA conversou com Linoca Souza, artista visual negra que ilustra a coluna de Djamila Ribeiro no jornal Folha de S. Paulo. Em seu trabalho, ela busca a representação da mulher e de religiões de matriz africana. “Meu trabalho tem uma busca do meu lugar no mundo e da minha compreensão como pessoa não-branca no Brasil”, diz ela. “Assim como muitas pessoas filhas de pessoas pretas e que tem tons de pele mais claro no Brasil, acabo caindo neste lugar de tentar entender o que somos. Não somos brancas, mas o que nos ensinam sobre o fenótipo de pessoas pretas também parece distante em muitos momentos. Ainda mais com o mito da democracia racial, que finge que somos todos iguais.”

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A artista visual Linoca Souza representa as mulheres negras em seu trabalhoLinoca Souza/Divulgação

É inegável que os exemplos de mulheres negras em destaque têm crescido na última década. Beyoncé, Lupita Nyong’o,  Lizzo e Maju Coutinho, que hoje ocupa sozinha a bancada do Jornal Hoje na TV Globo, são apenas alguns dos grandes nomes que servem de inspiração quando se fala de representatividade. Em 2019, por exemplo, a cantora IZA foi destaque no Rock in Rio ao trazer uma menina negra de 9 anos para dançar no palco com ela. Hoje, a menina Luara tem mais de 280 mil seguidores no Instagram.

Falta representatividade?

A representação de negros e mulheres na política, na educação e no mercado de trabalho melhorou, mas ainda há muito para mudar. Dados da União Interparlamentar mostram que apenas 24% de todos os parlamentares mundiais são mulheres. No Brasil, as mulheres representam somente 16% do total de políticos eleitos em 2018, mesmo somando 52% da população geral, segundo o TSE.

Para a população negra, a falta de representação vai além das cadeiras políticas.  De acordo com a pesquisa “Desigualdades Sociais por Cor ou Raça no Brasil”, em 2019, o índice de alunos pardos e negros matriculados em universidades públicas brasileiras superou a taxa de alunos brancos pela primeira vez na história alcançando 50,3%. No entanto, quando se compara esses números com os índices da população branca, a desigualdade racial continua latente.  O IBGE aponta que 78,8% dos jovens brancos entre 18 e 24 anos estão no Ensino Superior. Entre os negros na mesma faixa etária, essa porcentagem cai para 55,6%.

Maniqueísmo

Linoca chama atenção para a visão maniqueísta que pode acontecer em torno da figura de Kamala. “Eu visualizo a importância da figura dela de modo estratégico para a retirada do Trump.  Entretanto, não podemos achar que haverá uma grande transformação, que os EUA deixarão de brigar por ser potência, ou que o partido não terá algumas questões ao longo do mandato que serão contrárias ao que eu ou outras pessoas negras e imigrantes dos EUA acreditam”.

E como melhorar a representatividade?

Para a artista, na política, a mudança deve vir dos partidos, que devem se mobilizar para, além de lançar candidatura, dar suporte a mulheres candidatas. Ela lembra do caso de Lélia Gonzalez, referência no ativismo negro até hoje, que se candidatou como deputada federal na década de 1980 e não foi eleita por falta de apoio. “Anos se passaram e continuamos na mesma situação. Partidos que utilizam figuras femininas para se promoverem, mas não se organizam sequer para manterem um comitê para essas mulheres.”

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Caminho aberto para outras mulheres?

No período da eleição de Dilma Rousseff como primeira presidente mulher no Brasil, analistas diziam que ela havia quebrado um “teto de vidro” – o que seria uma metáfora para barreiras invisíveis que impediam mulheres de ocupar cargos como o dela. Kamala, nesse caso, representaria o mesmo na política norteamericana.

“Ocupar um cargo pela primeira vez é grandioso e necessário, mas não rompe todas as barreiras, porque o padrão masculino, branco e hétero, que vem sendo construído há anos, ainda não oferece as mesmas oportunidades para as mulheres.”

Linoca Souza

A menor representação e a falta de oportunidades não se justifica pela competência das mulheres em cargos de liderança no mundo. Em 2020,  uma pesquisa realizada pelo Fórum Econômico Mundial e pelo think tank Center for Economic Policy Research, chamada “Liderando a luta contra a pandemia: Gênero ‘realmente’ importa?”, em tradução livre, mostra que países governados por mulheres tiveram resultados “sistematicamente e significativamente melhores” na resposta ao coronavírus. Estabelecendo medidas rígidas de isolamento mais cedo, estes países reduziram pela metade o número de mortes em relação a nações encabeçadas por homens. A reportagem de Veja detalha esse desempenho das lideranças femininas aqui

A ilustradora é otimista, mas com ponderação: “Eu vejo um leve aumento da presença feminina em espaços políticos, cargos públicos e também lideranças de empresas. Mas isso ainda precisa aumentar em muitos níveis. Se olharmos o caso do assassinato de Marielle Franco ou até mesmo as cobranças que já vêm sendo feitas com a Kamala, independente das afinidades que as pessoas tem com ela, vemos que barreiras estão apenas começando a serem trincadas”, finaliza Linoca.

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