“Vou te matar com explosivos”, “já pensou em ver seus familiares estuprados e sem cabeça?” e “vou quebrar seu pescoço”. Estas foram algumas das ameaças recebidas por Jean Wyllys (PSOL) nos últimos anos. As inúmeras mensagens de ódio o fizeram desistir de seu terceiro mandato como deputado federal e sair do Brasil. “Preservar a vida ameaçada é também uma estratégia da luta por dias melhores. (…) Obrigado a todas e todos vocês, de todo coração”, escreveu o parlamentar no dia 24 de janeiro ao anunciar sua decisão.
O substituto de Wyllys na Câmara dos Deputados é David Miranda (PSOL), que tomou posse em 1º de fevereiro. Nascido na favela do Jacarezinho, na zona norte do Rio de Janeiro, o parlamentar se tornou o primeiro vereador LGBT da história da cidade. Ao programa Entrevista por Catraca Livre Miranda disse que o ocorrido com o companheiro de partido é “um grande agravo à democracia”. “Jean sai do país como um herói neste momento. Ele foi um precursor da luta LGBT e de direitos humanos lá em Brasília, mas ao mesmo tempo passa o bastão e a gente continua a luta pela democracia e contra esse presidente eleito que não nos representa”, declara.
Segundo Miranda, o dia em que ele recebeu a notícia sobre a saída de Jean foi muito difícil. “Saber que um companheiro de partido eleito tinha que sair do país porque a sua integridade física estava a perigo traz muito pesar no meu coração. Ao mesmo tempo, [precisei] pensar que eu tinha que ir pra Brasília neste cenário.” Assim como Wyllys, o deputado federal recebe ameaças com frequência, grande parte delas pelas redes sociais, mas algumas também presencialmente. “Quando passou o primeiro turno, a gente estava na Lapa [centro do Rio de Janeiro] e um cara gritou: ‘Este é aquele viado que a gente tem que matar’.”
Mesmo assim, Miranda ressalta não ter medo de ocupar o cargo do colega. “Medo sobre as ameaças, sobre minha família, eu tenho. Medo de ir para Brasília e assumir este cargo nesta posição, eu não tenho. Estou indo para lá com garra, pois preciso representar uma população que votou em um programa. Eu venho da favela, sou LGBT, sou negro e a nossa população está sendo massacrada todos os dias”, relata. “Estou completamente preparado porque o que está lá [no Congresso] é o que tem de pior na política, e muito do que eu já combati como vereador no Rio de Janeiro”, completa.
Assista à entrevista completa:
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Política e militância
David Miranda iniciou na política quando entrou no coletivo de juventude Juntos, logo após ter participado do projeto que expôs o plano de espionagem dos Estados Unidos e seus aliados, em 2013, ao lado de seu marido, o jornalista Glenn Greenwald, e de Edward Snowden e Laura Poitras. “Eu sou um corpo político na forma da minha existência. Sou o corpo político que é mais morto nas estatísticas do país. Entrei na militância porque queria trazer o [Edward] Snowden para o Brasil. Comecei a ir para os protestos, essa galera me movimentou e me fez acreditar que o futuro da política está nas mãos da população, e não dos políticos.”
A escolha de Miranda como candidato à Câmara dos Vereadores do Rio de Janeiro se deu em uma reunião do coletivo, sem sua presença, em 2016. “Eu estava em uma viagem quando recebi a notícia. Foi a coisa mais linda do mundo, comecei a chorar. Iniciamos a campanha com 30 pessoas e terminamos com 188, entre jovens, LGBTs e periféricos, que se juntaram todos os dias e assim fomos eleitos em um mandato coletivo.” O parlamentar conta que entrou na Câmara pela primeira vez apenas depois de eleito. “Eu nunca tinha pisado naquele lugar. Achava que não pertencia a ele.”
O mandato coletivo que foi encabeçado por Miranda é aberto e horizontal, ou seja, as pessoas podem participar de plenárias e consultorias, além de enviar suas denúncias ou perguntas pelo aplicativo. “Todos os mandatos deveriam ser coletivos porque os cidadãos precisam utilizar os parlamentares. Eles estão ali para representar a voz da sociedade.”
Entre os principais projetos aprovados pelo mandato, estão o que permitiu o uso do nome social a trans e travestis na cidade, um segundo que colocou servidor, pensionista e aposentado como prioridades máximas na folha de pagamento do município, outro que tornou obrigatória a contratação de um artista local em megaeventos no Rio e, por último, o Disque 100, para denunciar racismo.
Primeiro vereador assumidamente LGBT da história do Rio, Miranda relata que enfrentar o preconceito por parte dos demais parlamentares foi o mais difícil. “A gente sofre LGBTfobia em todos os locais. Aquele lugar é completamente heteronormativo. Então, é piada nos corredores, piada no plenário… Foi muita chacota, mas eu não deixei isso abalar na minha atuação parlamentar e consegui passar grandes projetos a partir do diálogo.”
Um dos episódios de homofobia mais marcantes ocorreu no evento do processo de impeachment do prefeito Marcelo Crivella. “Um vereador fez uma dança homofóbica e me chamou de ‘viadinho’ no plenário, na frente de todo mundo. O pior foi lá fora, quando estávamos dando entrevista, ele disse que eu o chamei de ‘viado’. Como se eu fosse utilizar um termo pejorativo, sabendo o quanto esse termo machuca a nossa comunidade. Eu estava na frente dos meus iguais e era um parlamentar eleito.”
“Eu terminei aquele dia, subi para a minha sala e chorei. Foi a primeira vez que chorei na Câmara por LGBTfobia. Mas no dia seguinte estava lá de volta fazendo meu discurso e ele foi me perseguindo. Eu estou ali para fazer um trabalho, não para ficar atrás de uma câmera fazendo vídeo para publicar no Facebook sobre briga com parlamentar. Eu fui um dos jovens parlamentares que mais passou leis na história em menos de dois anos ali naquela casa. Se procurar o histórico desses caras, não fizeram nem um terço do que eu fiz”, enfatiza.
Marielle Franco
David Miranda era melhor amigo da vereadora Marielle Franco, assassinada em março de 2018 no Rio de Janeiro. Os dois se sentavam um ao lado do outro na Câmara e tinham uma relação muito próxima. “A gente perdeu uma grande estrela. Marielle era gigante não só na política, era gigante como pessoa. Qualquer pessoa que teve qualquer contato com elahc lembra daquele sorriso. Quando ela entrava em um lugar, iluminava tudo ali. Era cheia de energia”, lembra.
No decorrer deste último ano, o parlamentar fez diversos pronunciamentos, falou com o chefe da Polícia Civil e buscou apoio de organizações internacionais para cobrar respostas sobre o crime. “O que eu falo sempre: a gente não vai descansar enquanto não encontrar quem matou, quem mandou matar e por que mandaram matar a Marielle Franco. O crime contra a Marielle foi um crime contra a humanidade, contra a democracia. O mundo inteiro chorou e o mundo inteiro precisa de uma resposta.”
Pautas no Congresso
De acordo com o deputado, a primeira pauta de seu mandato será a reforma da Previdência. “Este governo está querendo massacrar a classe trabalhadora, em que estão mulheres, LGBTs, negros, indígenas”, explica. Além disso, ele ressalta a importância de lutar por outros temas, como demarcação de terra indígena e meio ambiente, o direito das mulheres ao aborto e a descriminalização das drogas, por exemplo.
David Miranda diz que irá tentar dialogar com todo mundo, mesmo com aqueles de bandeiras opostas. “Eu já convidei a família Bolsonaro para falar sobre o fim do foro privilegiado, que o Flavio Bolsonaro começou a utilizar agora. A família Bolsonaro não queria tanto que isso acabasse antes?”, desafiou o parlamentar. “Eu sempre fui um cara pacífico. Mas não mete a mão no meu calo e não me coloque como chacota. Eu tenho educação, dupla formação, mas sou ‘favela’, e o histórico de favela e é de resistência.”
Ao final, ele deixou uma mensagem para a população: “Preste atenção em Brasília, preste atenção em todos os deputados, preste atenção no nosso mandato, vá junto com a gente, esteja presente na política, fale, comunique, entenda, saiba o que está passando, tenha paciência neste momento. É um momento de reconstrução, então vamos reconstruir todo mundo junto _ e ninguém soltando a mão de ninguém”.
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‘Jean sai do país como um herói’, diz deputado David Miranda publicado primeiro em https://catracalivre.com.br
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