As notícias mostram que o novo coronavírus já vitimou quase 27 mil pessoas no Brasil até a tarde desta quinta-feira, 28. Por trás de cada caso, que todos os dias se soma ao número total de mortos, esconde-se a história de um ente querido e de uma família que certamente sofreriam menos se tivessem tido o direito de se despedir ainda em vida. Apesar do momento difícil, é preciso não perder a humanidade. É o que acreditam algumas iniciativas.
“Não precisamos tornar essa pandemia ainda mais cruel do que já é. Aliás, precisamos com ela nos tornar mais humanos”, defende um abaixo-assinado online que propõe a aprovação de uma lei para garantir o direito a visita e despedida virtuais a pacientes internados com covid-19. A campanha, que já acumula o apoio de 80 mil pessoas por meio da plataforma Change.org, foi criada pela jornalista Silvana Andrade, que perdeu a mãe de 93 anos.
Depois de contrair coronavírus em uma internação médica, dona Maria Albani foi levada de volta a um hospital que possui atendimento humanizado em Recife (PE) e, devido ao agravamento do quadro, precisou ser encaminhada à UTI. No leito, ficou sem contato com os familiares que poderiam oferecer algum alento em seus últimos dias de vida. A história só não terminou de forma mais dolorida porque sua filha venceu uma batalha pelo direito ao adeus.
Mesmo em um hospital humanizado, não foi nada fácil para Silvana mostrar que, por mais caótica que seja, a pandemia não pode enterrar com seus mortos o princípio da humanização. Somente depois de acionar a imprensa e fazer “barulho” no meio político, a jornalista conseguiu a ajuda de dois médicos para realizar uma chamada de vídeo e dizer suas últimas palavras de agradecimento e de amor à mãe, que já estava entubada e sedada.
“O tablet que tanto distanciou as pessoas, que tanto desumanizou as relações, hoje é instrumento de humanização. Para mim, essa ligação fez toda a diferença. Sem isso, eu estaria angustiada”, declara a jornalista que agora tenta elaborar o luto de forma menos traumática. “Imagina não poder se despedir da pessoa que você mais ama no mundo?”, completa. Foram 15 minutos de videochamada e, cerca de 36 horas depois, dona Maria Albani faleceu.
Silvana conta que, no momento em que ouviu a enfermeira do outro lado da linha dizer que não seria possível fazer a chamada de vídeo, foi como se sentisse a dor de todas as pessoas que passam por essa angústia. São filhos, sobrinhos, pais e irmãos que viram seus parentes, vítimas da covid-19, pela última vez ao deixá-los no hospital e depois só voltaram para sepultá-los em caixões lacrados, sem velório e com número restrito de acompanhantes.
Depois de conseguir o direito humanitário para si, a jornalista decidiu ir mais longe em sua luta e sugeriu a elaboração de um projeto de lei para que a prática da despedida virtual seja institucionalizada em todo o país. A ideia foi abraçada pelo deputado federal Célio Studart (PV-CE), que redigiu e apresentou o PL 2136/2020 para garantir videochamadas de familiares a pacientes internados com coronavírus. Se aprovada, a lei se chamará “Maria Albani”.
Ação possível
Outros que acolheram a causa de Silvana foram a fundadora e a presidente do grupo “Vítima Unidas” — a estilista e escritora Vana Lopes e a ativista em Direitos Humanos Maria do Carmo dos Santos, respectivamente —, que propuseram à jornalista lançar em conjunto o abaixo-assinado a favor da medida. A petição se une a outras em um movimento de enfrentamento ao coronavírus, criado pela Change.org, em busca de ações para a crise.
“O abaixo-assinado é muito importante para capilarizar, ele amplifica e amplia o alcance no momento em que vai chegando a pessoas que estão em outro estado e país, e elas são como elos nessa grande corrente que transforma o mundo”, opina a jornalista. A campanha já recebeu o apoio de médicos, advogados, atores, procuradores e promotores de justiça.
Esse movimento em torno de gestos e práticas de humanização na pandemia começa a frutificar em iniciativas. Depois do caso de dona Maria Albani, o Governo do Estado de Pernambuco implantou o programa “visita.com”, que estabeleceu a videoconferência entre pacientes internados com covid-19 e seus familiares. O projeto prova que, além de necessária e fundamental, a ação da visita e despedida virtuais é também possível e viável.
“Qualquer isolamento é muito ruim para o paciente e seus familiares, mas esse, devido à contaminação tão grande e fácil, é pior. Entra o médico ou enfermeiro como um ‘astronauta’, dá um medicamento e sai. Imagina como fica o paciente que está acordado, podendo morrer a qualquer momento distante da família e sem contato humano?”, questiona a jornalista.
Silvana, que é ativista e fundadora da Agência de Notícias de Direitos Animais (ANDA), diz receber como um “presente” a chance de poder se mobilizar por esta campanha. “O que me conforta, o que acalma as dores da minha alma é trabalhar por uma causa justa. Isso tudo é amenizado por essa causa. Me sinto muito beneficiada em levar esse apelo adiante porque beneficiar alguém me faz muito bem. Lutar por causas justas me faz bem”, desabafa.
A jornalista acredita que muitas coisas serão transformadas com a pandemia, como a economia pensada apenas pelo viés financeiro. “Precisa ser do ponto de vista do meio ambiente, dos animais, das pessoas pobres. De uma visão holística que a política, a economia e todas as áreas da sociedade precisam ter, e a medicina também”, diz. “Esse vírus veio para a gente sair do pensamento focado, egoísta e viver essa forma mais solidária e mais holística”.
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Mais iniciativas ganham força
A história da dona Maria Albani inspirou, ainda, outras ações. Uma delas é o “Projeto Janela”, um perfil no Instagram, formado por fotógrafos e tatuadores que oferecem sua arte “para eternizar o amor e as histórias de pessoas que foram vítimas da covid-19”. A mãe da Silvana foi a primeira homenageada por este ato solidário, que acaba de ser lançado para ajudar as famílias durante o processo de cura e de despedida de seus parentes.
Ação semelhante é a plataforma online “Inumeráveis”, um memorial criado pelo artista Edson Pavoni e dedicado à história de cada uma das vítimas do coronavírus no Brasil.
Silvana ainda destaca iniciativas da própria despedida virtual que acontecem fora do país. Ela conta sobre o médico brasileiro Fernando Kaway, que trabalha em um hospital em Nova York, nos Estados Unidos, e adotou a videoconferência entre pacientes da covid-19 e seus entes. Paliativista, o médico gravou um vídeo contando como a prática ajuda a família a reduzir o sofrimento e o estresse emocional. Kaway narra, no vídeo, episódios de pacientes em coma que tiveram reações ao ouvir a voz de seus parentes na videochamada.
“A possibilidade de ver e dizer algumas palavras, mesmo que a pessoa esteja sedada, ameniza a dor”, enfatiza a jornalista que segue em busca de mais apoiadores para que a campanha vire lei. O PL está aguardando despacho do presidente da Câmara dos Deputados, Rodrigo Maia (DEM-RJ), para ser votado pelos deputados da Casa.
Veja também: ‘Não é um número’: projeto homenageia vítimas da covid-19 no Brasil
Iniciativas unem forças em busca de humanização na pandemia publicado primeiro em https://catracalivre.com.br
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